Arquivo mensal: março 2012

uma crônica para felipe

Padrão

Felipe chegou de mansinho, muito cordial e polido, pedindo uma informação completamente inútil:
– Antes deste trem passou mais algum?

Muitos trens haviam passado antes daquele, aquele mesmo inclusive, e isto evidentemente não era importante. Importante era que Felipe tentava encontrar em mim, uma desconhecida, a resposta para a mais perturbadora pergunta a alguém que acabara de fazer 19 anos.

– Devo acreditar no meu amor?

Eu que não sou pouco nem passivamente supersticiosa, procurei por fora e por dentro de mim quem havia colocado Felipe em meu caminho – e eu no dele – no dia e na estação de trem em que eu casualmente decidira ficar sentada por duas horas e meia aguardando uma ligação autorizando a seguir em frente.

Os olhos de Felipe brilhavam de alegria, desespero e reflexo das lâmpadas brancas e frias do embarque sentido Barra Funda da Estação Brás. Nossa conversa escandalizava cada passageiro pelos 7 segundos que passavam por nós entre a escada e a porta do trem, ou vice versa. É que Felipe já não continha suas mágoas de garoto apaixonado, assumindo cada loucura, desespero, entrega, indignação e revolta. Contou de tudo o que deixara para trás por conta deste amor, tudo o que perdeu, os empregos, os amigos, os estudos, quase a família e a cabeça.

– Eu fiz de tudo por este amor.

Este, seu primeiro amor, que sempre parece o último, como eu bem lhe avisei várias vezes. Que largar tudo porque alguém lhe exigiu não é uma coisa boa. Que muitas pessoas muito interessantes aparecerão. Que ser bela não é o melhor que uma pessoa deve ser. Que se a pessoa a quem você dia amar, se delicia te desejando a morte, o amor deve ser caso de polícia. Que é preciso cuidar de você antes de tudo. Que o amor não precisa ser ruim. Que não desistisse de amar.

*****

Passadas quase três horas de conversa, Felipe foi embora correndo. Ainda tenho dúvidas se foi mesmo para casa ou se tentava chegar a tempo de tomar o mesmo trem no mesmo horário de na mesma plataforma e mesmo vagão da pessoa amada.

Eu respirei fundo e silenciosamente pedi para quem o tinha colocado ali, que minhas palavras tivessem um mínimo de eco e que não corresse pelas escadas mais uma alma perdida dessas capazes de matar ou morrer em nome disso que chamam de amor, nem dessas algumas cruas incapazes de encontrar um cisco de felicidade na mais maravilhosa e simples pessoa que passa pela sua vida (desistindo de acessar a imensa felicidade causada por um cisco do sorriso, voz ou cheiro da pessoa amada).

Respirei fundo e em menos de 7 segundos eu estava dentro do trem seguindo meu rumo.

O trem corria, vagão em vagão, lotados e vagos vagões, e meu corpo querendo desligar de cansaço. Ainda deu tempo de sentar no único banco vazio, cheia de malas e hematomas da alergia causada pelos insetos, os pensamentos ainda conseguiram formular, tristemente, a realidade de que era impossível pensar se havia alguém ali mais necessitado do que eu depois de um dia tão intenso.

*****

A conversa com o garoto havia me obrigado a projetar no mundo, num mundo que não o meu cotidiano de amigos e companheiros, nem de papéis reconhecidos, as minhas crenças sobre este assunto, a mim, tão caro: o amor. A conduta que propus a Felipe, que parasse de alimentar a relação doentia com o ser que o enlouquecia, que buscasse tomar internamente a decisão doída de esquecê-lo e que, além de tudo, buscasse crescer com esta história, certamente não é a conduta mais simples, nem a mais agradável. Dói.

Tive que pensar em tudo o que lhe disse e vi que não tirei da cartola tantas palavras como uma dádiva de quem o havia colocado ali. Cada palavra que lhe dissera recolocou em minha pele cada lágrima, ferida e carta jamais enviada. Escancarou minhas fragilidades transformadas em palavras e conselhos para não se tornarem resignação.

Lembrei que desde que decidi que o amor não devia ser algo ruim, e isso não faz tanto tempo assim, tenho sido bastante disciplinada com minhas condutas: não quero nada que não me acrescente nem quero sugar nada de ninguém. Não quero mais romances imaginados em duas cabeças paralelos a conversas de meias palavras que dão a entender o que cada uma das partes quiser ouvir. Não quero ter que escavar uma grossa camada para chegar ao que há de melhor na outra pessoa se tudo o que ela quer me oferecer é ruim. Quero seguir o meu caminho e amar quem também queira seguir o seu caminho e que seja ótimo se os caminhos se encontrarem e isso sim é mesmo amor. Desvios e paragens por falta de fôlego causado por loucuras de romances de folhetins ou para dar a mão a quem está se perdendo dentro de casa com a luz acesa, não mais, isto não é amor.

Lembrei também que isto pode ser duro com quem vê em mim, como Felipe, alguém para responder se passou e passarão outros trens além daquele que acabara de sair e se vale a pena acreditar em seu amor; lembrei também que é preciso ser o tão doce, sincera e cuidadosa como sei ser, mas que não posso convencer as pessoas a me perguntar; que posso responder o que quiserem, mas não posso convencê-las a querer saber; que estou disposta a lidar com inseguranças como as de Felipe, e também com incertezas como a da sua pessoa amada, e com a possibilidade de precisar dedicar muita energia a um único e exclusivo amor por vez ou ainda, o que é mais difícil, com a possibilidade de ser a maior frustração ou dor da vida inteira, mas, que não posso responder ao que não me perguntam, que não posso curar inseguranças de quem prefere fingir coragem, que não posso me dispor em nome de um amor a alguém que diz “não”, querendo que eu mesma o convença a dizer “talvez”. É o caminho de cada um e não podemos esperar que apareçam pessoas dispostas a nos colocar de volta em nossos próprios trilhos (ou caminho mesmo, prefiro assim).

Lembrei que, em situações como esta, como diria um conto destes carregados de verdadeiríssma inspiração literária… “Não há nada há ser feito”. Não há o que esperar. Não há o que entender. Está tudo dito quando não dito. Mesmo quando a pele e os olhos dizem mais que as palavras (e sempre dizem), quando os descompassos, as incertezas revestidas de verdade absoluta, quando medos de futuros fantasmas assombram o presente e matam o amor de fome antes mesmo dele nascer… não há nada ser feito.

Antes que eu pareça desiludida com a palavra amor ou que toda e qualquer uma das cinco pessoas que passarão os olhos por esta crônica até desista de ler, vou chegando a um final, um final para Felipe.

*****

Felipe correu pela estação, ainda certo de que os 10 minutos seriam suficientes para chegar como todos os dias na mesma estação, plataforma e vagão de todos os dias, um dia normal como qualquer outro em que Felipe finge não ter problema algum como todos por quem passa correndo e levemente empurrando pelas 3 baldeações. Felipe ainda não sabe, mas faz parte de todo processo de recuperação de um amor frustrado querer provar a quem você ainda ama que está tudo bem, tudo normal, como ela mesma finge estar com a vida dela.

Felipe continuou correndo, impaciente, justificando para si mesmo que o motivo de tanta pressa era chegar em casa no mesmo horário de sempre, para não preocupar sua mãe nem aborrecer seu pai.

E usou toda agilidade e leveza do corpo leve e jovem para avançar por entre as estações. Chegou a sua estação de praxe, plataforma de praxe e vagão de praxe com 10 minutos de atraso. Sem querer reconhecer para si mesmo, procurou um pouco em volta para tentar avistar aquela mesma pessoa de todos os dias dos últimos 8 meses.

Não encontrou.

O trem chegou à plataforma e Felipe titubeou em entrar, pois imaginou, já despreocupado com o que isso significava, que a pessoa poderia estar atrasada um pouco mais. Ou ainda, com outra pessoa em algum lugar sujo qualquer na estação. Ou o que era pior – e estes pensamentos piores sempre vêm à cabeça de todas as pessoas nesta situação, mal sabe Felipe – poderia estar indo embora no trem de sempre aconchegada em outros braços que não o seu…

Foi um impulso de segurança que colocou Felipe dentro daquele trem antes das portas se fecharem com ele para fora. Felipe já não percebia nada. Os olhos perderam o brilho de alegria, desespero e lâmpadas e restaram apenas lágrimas. Pela primeira vez Felipe chorou sozinho. Não pediu, desta vez, conselho algum aos desconhecidos do trem. Um choro intenso, silencioso e verdadeiro inundou todo seu rosto. Sentia como se as lágrimas não saíssem dos olhos, mas do peito. Sentia que não havia mais nada a fazer senão chorar.

Uma senhora próxima a porta olhou tão firmemente a Felipe, que imediatamente ele entendeu que era a sua estação.  E já não pensava mais em nada mas seus pés o conduziram em segurança até sua casa.

Sua mãe e pai entenderam que o rosto inchado e molhado, junto dos soluções, não era nada que precisasse ser dito e o deixaram ir em paz para seu quarto. Felipe chorou tanto e chorava ainda mais cada vez que achava que morreria de tanto chorar. Sua mãe lhe deu água, açúcar e colo. Disse algumas palavras que Felipe respondeu e nem lembra o que foi. Continuou chorando como quem chora a morte, algo irreversível. Chorou tanto que, pela primeira vez desde o dia em que se viu amando, não deu atenção por um segundo sequer ao celular, email, redes sociais. O choro ganhou vida própria: tomou primeiro o rosto e o coração, depois foi para a cabeça, os músculos e os ossos.

Passaram alguns dias e Felipe aceitou ser tratado como quem estivesse se recuperando de uma doença séria por sua mãe, que controlava a hora de comer, de tomar banho, de ir para a faculdade. E Felipe passou alguns dias pensando apenas no que sua mãe, professores, livros e propagandas lhe mandavam pensar. Aos poucos foi reavendo os quilos levados pelo amor doentio. Foi se interessando pela faculdade nova, completamente distante daquela outra que em tudo lembrava o passado. Passado… circulando em seu caminho e horário, Felipe foi conhecendo a possibilidade de levar uma vida muito sem graça mas distante de loucuras que terminariam apenas na delegacia ou no hospital.

Só depois de muito tempo é que Felipe se recordou do dia em que, aflito, havia pedido conselho a uma desconhecida numa estação qualquer de trem. Quando riu de si mesmo lembrou que a moça havia lhe dito que um dia isto aconteceria e, quando isto acontecesse , ele estaria se recuperando. Ficou feliz. Não lembrava muito mais de nada daquela conversa tão longa e alucinada com a desconhecida. Mas sabia que havia algo relacionado a cuidar de si antes de tudo, que conheceria ainda muitas pessoas interessantes e para que jamais deixasse de ter fé no amor.